sexta-feira, 23 de junho de 2017

Duas polémicas com a prova de Português do 12.º ano (639): 1.ª fase/2017

Em torno do exame nacional de Português do 12.º, nesta 1.ª fase, surgiram dois factos que geram polémica: um tem a ver com um alegado erro no enunciado, erro que o IAVE, IP (Instituto de Avaliação Educativa, Instituto Público), entidade responsável pela elaboração, organização e avaliação das provas, desmente; e outro, atinente a uma alegada fuga de informação prévia ao dia do dito exame, que foi o dia 19.
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O poema XXXVI (Há poetas que são artistas”) de “O Guardador de Rebanhos” de Alberto Caeiro, o heterónimo naturalista de Fernando Pessoa, escolhido para o Grupo I de questões de resposta de média extensão, tem um verso não igual à versão original, o que alegadamente provocou confusão aos estudantes.
De facto, o seu 9.º verso, no original e na maior parte das versões que se confrontam com o manuscrito, é: “Penso nisto, não como quem pensa, mas como quem respira”. Entretanto, no exame, cuja referência é a 3.ª edição da obra “Poesia de Alberto Caeiro”, de Fernando Cabral Martins e Richard Zenith, publicada em 2009, o mesmo verso tem a seguinte variante: “Penso nisto, não como quem pensa, mas como quem não pensa. A análise e interpretação do poema, que surge na parte A do Grupo I da prova, devem ser feitas mediante a resposta a três questões. A segunda dessas questões incide precisamente sobre o verso em causa, solicitando aos estudantes que o interpretem “atendendo à especificidade da poesia de Alberto Caeiro”.
De acordo com Hélder Sousa, Presidente do IAVE, “não há erro nenhum”. No comunicado enviado à imprensa, o IAVE esclarece que “o verso em apreço apresenta, na obra citada na prova, a redação que dela consta”. A edição da obra que foi citada no exame “diverge de outras edições”, mas “o seu teor não impede nem condiciona a resposta ao item 2 do Grupo I”: o aluno deve responder à questão com base no poema citado, não com base em qualquer outro. E, no dia 21, o IAVE prestou mais um esclarecimento reafirmando a inexistência de erro e argumentando:
“Como habitualmente, o IAVE tem de fazer opções na escolha de textos a incluir nas provas, opções essas que são sempre sustentadas em pareceres de especialistas, como aliás acontece com todo o conteúdo da prova”.
É óbvio que não é o IAVE o autor material das provas, mas os professores a quem a sua elaboração é confiada e ninguém duvida da competência destes professores. Não obstante, seria útil que a entidade responsável, em vez de fugir com o rabo à seringa, viesse esclarecer e promovesse a intervenção atempada de quem pudesse esclarecer. Na verdade, há uma alteração, que não pode ser escamoteada, pois uma alteração é uma alteração. É certo que não se trata de erro qua tali. Porém, como estamos a lidar com estudantes a quem tudo pode servir de pretexto para perturbação, exceto o comportamento deles, o IAVE ou o JNE (Júri Nacional de Exames) deveriam permitir e até aconselhar a intervenção apaziguadora dos professores coadjuvantes nas salas de exame. Aliás, se não for para intervirem em casos de necessidade ou de conveniência, pergunto-me para que serve a figura do professor coadjuvante.
Eu sei que não é possível este professor entrar nas salas a não ser com autorização do IAVE ou do JNE, mas devia ser. Basta de os professores estarem simplesmente às ordens do comando, que podem nunca chegar. Há anos, houve um erro na prova de História A e só quase no fim da prova o GAVE (então era assim que se denominava) é que autorizou os coadjuvantes a irem à sala, quando até alguns vigilantes já se tinham apercebido da inexatidão e, sem alarme, pediam a intervenção de coadjuvantes que não era autorizada. Burocracia que afinal não obsta a fugas de informação prévias, mas tolhe o serviço!
Do meu ponto de vista, os organizadores da prova, neste caso, estão livres de qualquer censura, uma vez que mencionaram corretamente a edição em que se apoiaram.
Quanto aos alunos, há que dizer que tinham de analisar e interpretar o material que lhes foi apresentado, já que não é obrigatório que os textos do programa sejam todos analisados em aula nem o exame se vincula necessariamente aos textos indicados no programa. Nesta fase do campeonato, têm os alunos de considerar, na análise, as caraterísticas da obra, mas atendo-se fundamentalmente ao texto em presença e não a outro. E um aluno que detetasse a diferença de texto e a expressasse na prova deveria ser valorizado por isso. E deixemo-nos de fantochadas. Quantos alunos deram em aula o poema XXXVI?
Penso nisto, não como quem pensa, mas como quem respira” ou “Penso nisto, não como quem pensa, mas como quem não pensa” não se torna essencial para a análise da poesia de Caeiro. Todavia, “como quem respira” pode implicar, além da naturalidade desta ação automática, uma necessidade, quando o poeta entende que o pensar é prejudicial, implicando “estar doente dos olhos” e quebra a inocência, pois, “Amar é a eterna inocência / E a única inocência não pensar”.
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E não é a primeira vez que surgem dúvidas em relação aos enunciados dos exames de Português. Em 2015, a ANPROPORT (Associação Nacional de Professores de Português) denunciou a existência de critérios diferentes para corrigir respostas idênticas nos exames do ensino secundário. E nem todos os classificadores das provas tinham recebido a mesma informação com as indicações para a correção do exame. Mas o IAVE sustentou:
“A questão relativa ao item do Grupo III, colocada nos media pela ANPROPORT, parece assentar num desconhecimento da versão final dos critérios de classificação, na qual se refere que a «apresentação de uma reflexão que associe os estímulos sensoriais apenas ao domínio da publicidade não implica, por si só, a desvalorização das respostas»”.
Em 2014, a mesma ANPROPORT disse ter encontrado um erro nos critérios de correção do exame de Português do 12.º ano e que valia meio valor. O erro era referente a um texto de Lídia Jorge sobre Eça de Queiroz em que o estudante tinha de identificar o ato ilocutório da expressão “como um dia veremos”. A resposta certa seria ato ilocutório assertivo, mas os critérios de avaliação lançados pelo IAVE admitiam como resposta correta ato ilocutório compromissivo. E o IAVE garantiu que não havia qualquer erro.
Já em 2003, nas provas de aferição de Língua Portuguesa do 6.º ano, uma questão continha um segmento linguístico do género “este livro não me pertence”. E os alunos tinham de identificar o pronome pessoal e o demonstrativo. Os professores classificadores levantaram a questão de a palavra “este” ser um determinante demonstrativo e não um pronome demonstrativo. O então GAVE não se deu às boas, mantendo a classificação de pronome demonstrativo e remeteu para a Nova Gramática do Português Contemporâneo, de Lindley Cintra e Celso Cunha. É certo que estes autores não distinguiam pronomes e determinantes, mas que os pronomes se utilizam em posição substantiva ou em posição adjetiva. Ora, desde há muitos anos que se ensina, de acordo como os programas ministeriais, que os pronomes colocados em posição adjetiva se denominam determinantes – eu ainda aprendi a chamar-lhes adjetivos determinativos e ainda ensinei a chamar-lhes pronomes adjuntos.
Mas o GAVE/IAVE não cede.
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Outra polémica rodeia o exame de Português do 12.º ano desta 1.ª fase. De acordo com o Expresso on line, no dia 21, e outros órgãos de Comunicação Social, o IAVE, IP, responsável pela elaboração dos exames nacionais, divulgou a seguinte informação:
“Na sequência da divulgação de um ficheiro áudio que revela informações sobre a prova de Português 639 da 1.ª fase, realizada no passado dia 19, e que alegadamente foi difundido antes da aplicação da prova, o IAVE vem informar que, como habitualmente, vai hoje remeter para a IGEC [Inspeção Geral de Educação e Ciência] e para o Ministério Público todas as informações de que dispõe sobre o caso para efeitos de averiguação disciplinar e criminal”.
Em causa está a gravação áudio que esteve a circular nas redes sociais e no Whastapp dias antes da prova que se realizou no dia 19. Nesse áudio, ouve-se uma adolescente, que não se identifica, a revelar conteúdos que coincidem com o que saiu no exame:
“Ó malta, falei com uma amiga minha cuja explicadora é presidente do sindicato de professores – uma comuna – e diz que ela precisa mesmo, mesmo, mesmo e só de estudar Alberto Caeiro e contos e poesia do século XX. Ela sabe todos os anos o que sai e este ano inclusive. E pediu para ela treinar também uma composição sobre a importância da memória e outra sobre a importância dos vizinhos no combate à solidão.”.
Tendo o professor Miguel Bagorro, da Escola Secundária Luísa de Gusmão, em Lisboa, tido conhecimento dessa gravação no passado dia 17, através de um aluno a quem dava explicações de Português, acabou por denunciar o sucedido ao ME (Ministério da Educação) logo no dia 19, após ter confirmado que o conteúdo da prova correspondia ao que a jovem referia. Não o fez antes, pois todos os anos há boatos sobre o que sai nos exames.
Ao final da tarde do dia 21, quarta-feira, o IAVE emitiu novo comunicado explicando que “os processos de denúncia ocorrem ocasionalmente, sendo sempre encaminhados para a IGEC e para o Ministério Público que apuram responsabilidades e determinam as sanções a aplicar, quando tal se justifique”. E diz que “o processo está a entrar em fase de averiguação e estará em segredo de justiça, nada mais havendo por ora a declarar”. No entanto, remeteu para os “próximos dias” esclarecimentos sobre a possível fuga de informação relativo ao exame nacional de Português, invocando o segredo de justiça para não avançar informações sobre o processo judicial. O mesmo documento remete para os “próximos dias” outros esclarecimentos sobre o caso, nomeadamente no atinente a “aspetos estatísticos, históricos, metodológicos, de enquadramento, suas consequências”, entre outros.
Na denúncia que enviou ao ME e ao JNE, o referido professor refere que esta alegada fuga de informação “compromete seriamente a justiça do exame de Português” e defende que este “deveria pura e simplesmente ser repetido”. E acrescenta:
“Independentemente de vir ou não a ser anulada, o que me parece óbvio é que tem de haver um controlo muito maior sobre as provas porque o que aconteceu descredibiliza totalmente os exames nacionais”.
O referido professor entende que “não passa pela cabeça de ninguém que seja possível, por coincidência, acertar nas três coisas” e que “é óbvio que houve uma fuga”; e sustenta que “houve alunos que só estudaram o referido” ou, pelo menos, dedicaram-se-lhe mais, “o que os beneficiou”. No entanto, compreende que “anular a prova também pode causar injustiças, nomeadamente para os estudantes que a realizaram sem ter acesso àquela gravação e a quem o exame correu bem”, pelo que considera que esta “é uma decisão muito difícil”.
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Como foi referido, o ME reencaminhou a denúncia para o IAVE, entidade independente a partir de Nuno Crato e responsável pelos exames nacionais, que está a investigar. E o IAVE remeteu ainda para a IGEC e para o Ministério Público. Porém, a Procuradora-Geral da República (PGR), Joana Marques Vidal, afirmou que “até ao final do dia de quarta-feira o Ministério Público não recebeu nenhuma participação formal sobre uma alegada fuga de informação no exame de Português do 12.º ano. Com efeito, na passada quinta-feira, disse à margem VII Congresso dos Solicitadores e dos Agentes de Execução que decorreu até este sábado, em Viana do Castelo que não sabia “se hoje houve já a chegada de alguma participação formal ao Ministério Público”, pois, “ontem [quarta-feira], ao fim da tarde, ainda não tinha dado entrada”. E adiantou que “o que existe é uma declaração pública das entidades responsáveis a dizerem que vão mandar [a participação] ao Ministério Público”, frisando: “Estamos no início de qualquer investigação”.
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Não percebo como ainda se duvida da existência da fuga de informação. Há dois pontos (e não três como refere o professor) em que as redes sociais e exame coincidem: texto de Fernando Pessoa / Alberto Caeiro e a composição sobre a memória. Só falta encontrar os responsáveis.
É certo que anular a prova traz injustiça para os que tiveram êxito sem terem sabido da informação prévia. O razoável seria obrigar a nova prova os prevaricadores. Porém, dado o desconhecimento da extensão da fraude, isso não é possível: nem uma inquirição sob juramento a cada aluno resolveria o problema da verdade sobre o sucedido. A sujeição de um universo delimitado de alunos a uma prova é viável em casos especiais como uma greve de professores, funcionários, transportes ou o recentíssimo caso dos incêndios florestais que acarretaram a necessidade de luto.
Não anular a prova é erro e injustiça. Deve fazer-se investigação disciplinar e criminal que leve ao apuramento das responsabilidades e ao efetivo castigo dos responsáveis – cada um segundo a sua medida – sejam alunos ou professores, sejam sindicalistas ou forças de segurança, sejam outros quaisquer. E não se pode esperar pelo encontro e castigo dos responsáveis para tomar esta medida de anulação. Tomá-la tardiamente seria prejuízo maior e maior injustiça.
Veja-se o que se passa em caso de epidemia ou de incêndios: tomam-se medidas, mesmo sem encontrar os responsáveis. É a saúde, a segurança e, neste caso, a confiança que estão em causa.
Se isto passa impune, para quê tanto aperto em sala de exames? É a proibição de entrada a todos na sala, com exceção de inspetores e membros do secretariado; a identificação do examinando e a verificação entre a prova e documentos; as rubricas dos dois vigilantes na folha; a rubrica dos mesmos e do aluno em caso de rasura do n.º de páginas; a proibição de os vigilantes se afastarem da sala, estarem sentados, passearem, lerem, conversar alguma coisinha; a obrigação de distribuírem primeiro a folha de prova e só depois o enunciado (quase sempre com duas versões); e o facto de não poderem os alunos chegar atrasados, sair antes do tempo regulamentar, usar folhas de rascunho próprias, nem telemóveis nem máquinas de calcular não autorizadas, nem dicionários… Para quê, se uma fuga de informação passa impune e sem consequências?
E depois ainda têm a lata de dizer que é na sala de exame que se cometem as falhas. Pudera! Não há fugas todos os dias, nem os secretariados de exames e agrupamentos se estão sempre a enganar…

 2017. 06.23 – Louro de Carvalho

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