segunda-feira, 9 de janeiro de 2017

Faleceu o médico e bioeticista Daniel Serrão

Reconhecido pelo seu trabalho no campo da ética e da bioética, morreu na madrugada deste domingo, dia 8 de janeiro, o professor Daniel dos Santos Pinto Serrão, com a idade de 88 anos, especialista em ética da vida e conselheiro papal na qualidade de membro da Pontifícia Academia para a Vida. Na origem da sua morte estiveram problemas respiratórios decorrentes do atropelamento que sofreu há mais de dois anos e dos quais nunca mais recuperou. Na verdade, em 2014, Serrão foi atropelado numa passadeira, no cruzamento das ruas do Conde de Avranches com S. Tomé, no Porto, e esteve internado no Hospital de S. João.
O velório do ilustre extinto vem decorrendo desde este domingo na Igreja da Lapa, entre as 16 e as 20 horas, e o funeral realiza-se esta segunda-feira pelas 9, 45 horas, saindo da predita Igreja, como disse à Lusa o filho Manuel Serrão, que manifestou o desejo de que seja “respeitada a natureza provada dos atos fúnebres”.
Daniel Serrão destacou-se na medicina sobretudo pelos seus trabalhos nos campos da anatomia patológica e bioética, tendo-se destacado como especialista em ética da vida.
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Nascido na freguesia de São Dinis, na cidade de Vila Real, Trás-os-Montes, a 1 de março de 1928, completou o Curso Geral dos Liceus, em 1944, em Aveiro, com 18 valores, tendo antes frequentado o Liceu de Viana do Castelo e o de Coimbra. Ainda em Aveiro, terminou, em 1945, o Curso Complementar de Ciências, com 18 valores. Em 1951 completou o Curso de Medicina, na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, com a média final de 17 valores. Cumpriu o serviço militar obrigatório, de 1951 a 1953, em serviço no Hospital Regional n.º 1 do Porto.
Porém, reservou sempre lugar especial para a família, que tinha para si um valor nuclear. Casou, em 1958, com Maria do Rosário de Castro Quaresma Valladares Souto, pouco depois de ter cumprido o serviço militar em Mafra. Era sua prima afastada e uma das primeiras professoras de Educação Física, com quem travou conhecimento quando ambos viviam no Porto. Tiveram 6 filhos (um deles falecido em 1993) e 9 netos. Quando foi mobilizado para Luanda (outubro de 1969), 9 anos após o casamento, já tinham 6 filhos, 4 raparigas e 2 rapazes. Nessa altura, construíram a casa de família na Rua de S. Tomé, onde viveram toda a sua vida.
Doutorou-se em 1959, na predita Faculdade de Medicina, com 19 valores. Concorreu em 1961 a professor extraordinário de Anatomia Patológica, tendo sido aprovado por unanimidade. De outubro de 1967 a novembro de 1969, esteve mobilizado, em Luanda, prestando serviço no Hospital Militar como anatomopatologista e passando à disponibilidade com a patente de major. Tendo concorrido a Professor Catedrático em 1971, foi aprovado por unanimidade e assumiu a direção do Serviço Académico e Hospitalar de Anatomia Patológica.
De 24/06/1975 até 30/06/1976, esteve fora do exercício de funções em virtude dum saneamento, que foi anulado por decisão do Conselho da Revolução, tendo-lhe sido pagos os vencimentos dos 12 meses em que foi impedido de exercer as suas funções (académicas e hospitalares). E, enquanto esteve impedido, montou e dirigiu um laboratório privado de Anatomia Patológica que, de julho de 1975 até dezembro de 2002, realizou 1 milhão e 600 mil exames histológicos e citológicos para hospitais públicos e para clientes privados. Jubilou-se a 1 de março de 1998.
Foi também membro eleito do Bureau do CDBI do Conselho da Europa, de 1996 a 2000 e de 2004 a 2008. Entre 1997 e 2008 ocupou o cargo de President do Working Party on The Protection of the Human Embryo and Foetus (CDBI CO-GT3). Foi ainda membro do Conselho Científico das Ciências da Saúde do Instituto Nacional de Investigação Científica (INIC) desde 1980 até à sua extinção pelo Decreto-Lei 188/92, de 27 de agosto, ou seja, durante 12 anos. Ocupou os cargos de Presidente da Comissão de Fomento da Investigação em Cuidados de Saúde, do Ministério da Saúde, de 1991 a 2008, de Presidente do Conselho de Ética da Saúde do Hospital da Ordem da Trindade e de Presidente do Conselho Médico da Médis. Durante 10 anos fez parte do CNECV (Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida). Desempenhou igualmente os cargos de orientador de 17 dissertações de Mestrado em Bioética dos cursos da Faculdade de Medicina, Instituto de Bioética e Faculdade de Filosofia da Universidade Católica Portuguesa (UCP), em Braga, e de professor nos Mestrados de Bioética da UCP. E foi ainda conselheiro do papa, por ser membro da Academia Pontifícia para a Vida.
Recebeu vários prémios ao longo da vida, um dos quais o Prémio Pfizer, com que foi distinguido em 1958, 1961 e 1971, e o Prémio Nacional de Saúde, atribuído pela Direção-Geral da Saúde (DGS), em 2010. Foi agraciado com a Medalha de Mérito da Ordem dos Médicos (2002), a Medalha Serviços Distintos do Ministério da Saúde grau Ouro e a Medalha de Mérito Militar do Ministério da Defesa. E, em 2008, recebeu do então Presidente da República Cavaco Silva a Grã Cruz da Ordem Militar de Santiago de Espada.
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Professor catedrático e investigador reconhecido dentro e fora do país no âmbito da anatomia patológica, Serrão assumiu-se como um eterno otimista e portuense por opção, embora tenha vivido em várias cidades do país, já que a família acompanhava o pai nas diversas comissões de serviço em diferentes distritos, enquanto engenheiro e diretor da Junta Autónoma das Estradas.
Entrou no ensino da bioética alguns anos depois de ter sido reintegrado como professor da Faculdade, convidado para lecionar aquela disciplina para suprir a ausência, por doença, da professora de Deontologia Profissional. Aceitou assumir gratuitamente a disciplina na condição de ser ele próprio a definir os conteúdos programáticos. A partir de então nunca mais deixou de investigar e aprofundar as temáticas da bioética, tornando-se numa voz autorizada e respeitada sobre a matéria. Viu reconhecidos os seus méritos nestas temáticas quando se tornou conselheiro do Papa, passando a integrar, no Vaticano, a Pontifícia Academia para a Vida.
Do trabalho de anatomopatologista – diagnóstico de doenças através do exame microscópico de células e tecidos ou macroscópico das peças cirúrgicas – disse Daniel Serrão que implica que o profissional “tenha resolvido o seu problema pessoal com a morte”, pois, enquanto não fizer tal esforço “é melhor não se aproximar de cadáver nenhum nem tentar fazer uma autópsia porque vai correr muito mal” (afirmava em entrevista em 2012). Para ele, a morte era o reconhecimento de que a nossa forma física de estar no mundo tem uma duração temporal limitada.
Entre os milhares de autópsias que realizou inclui-se o primeiro caso de sida em Portugal, apesar de então a doença ainda não ser conhecida. Mas identificou as lesões e disse que “aquilo não cabia em nenhum quadro clínico conhecido”; e, pouco depois, na América, falou-se pela primeira vez no vírus. Confessou ter revisto o caso e verificar que as lesões eram as típicas, nos gânglios e no fígado, mas já não adiantava nada, sendo que o mérito consistia em descobrir.
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A 7 de junho de 2010, o jornal I publicou uma entrevista sua, de que se respigam alguns dados marcantes. Nela, Serrão afirma que “o tempo da morte é de uma riqueza formidável” e que “os médicos têm de olhar para os doentes terminais como doentes privilegiados para tratar, não para evitar que morram”.
Com 82 anos, gostava de aparecer, conversar, juntar as pontas soltas da vida num novelo a que se pode chamar “sabedoria” – um exercício que vive de autoconsciência e meditação. Falou da morte, de que fez o luto ainda antes dos 20 anos, e do país, que deixou de ser uma nação.
- A propósito do seu livro de reflexões, com acento na sabedoria, disse:
Até aos 75 anos procurei passar o mais despercebido possível. Por vários motivos, até por feitio. Sempre tive pudor em aparecer, impor-me. Tinha o laboratório privado de anatomia patológica e parecia que andava a fazer propaganda. Quando fechei o laboratório, fiquei livre. Mas se calhar a velhice também muda as pessoas e eu hoje tenho algum gosto em ter alguma presença pública, e até quem sabe menos autocrítica.”.
E os filhos ofereceram-lhe um site pessoal, que tem muitos dos seus textos sobre bioética, antropologia, medicina e saúde – as áreas que tem cultivado.
- Sobre o atual sistema de saúde, disse concordar com a existência dum Serviço Nacional de Saúde, mas não este. Pensava que o país tem de ter um serviço nacional de saúde para as pessoas terem acesso a cuidados de saúde independente da capacidade para os pagarem, mas sem ser prestado todo pelo Estado. Embora com alguma relação estatal, têm de ser livres. E pensava que é “um pouco o que está a acontecer”, explicitando:
“Os hospitais já não são repartições públicas, são empresas, são sociedades anónimas, são parcerias público-privadas. Percebeu-se que as regras do funcionalismo público aplicadas à medicina não funcionam, a começar pelos horários. O doente não tem horários e à medida que médicos e enfermeiros se começaram a ver como funcionários acabou. Pagam horas extraordinárias? Não pagam? Então não trabalham. Eu há muitos anos disse que a medicina não era uma atividade burocratizável. Tem de haver controlo, mas o controlo faz-se pelos resultados.”.
Porém, não reparou que os hospitais públicos não vivem só de horários e da ideia distorcida da função pública que a sociedade e o Estado resolveram atacar.
Tendo-se afastado, há 6 anos, do serviço de anatomia patológica do Hospital de São João que dirigira durante mais de 30 anos, onde nunca mais entrara, disse ter começado com 10 anos de antecedência a preparar o afastamento para se dedicar à bioética. Aduziu ter entendido que, no momento de cessar funções, as pessoas tinham de se sentir livres para fazerem o que quisessem. Confessou ter gostado de ver como Sobrinho Simões desenvolveu até à última potência o trabalho e revelou que Fátima Carneiro, ao ser convidada para assistente, aceitara, mas pondo condições (o que estranhou) e que passou a ser grande especialista em cancro do estômago e diretora do serviço hospitalar. Sentiu que o crescimento das pessoas lhe deu formidável alegria.
- Nos anos de reflexão sobre bioética, julgou que a questão mais difícil foi o estatuto ético do embrião humano por ser o que suscita maior emotividade, talvez por nos lembrar que todos estivemos naquele estado durante horas. E, questionando-se se o embrião merece um respeito absoluto, inferiu que “tem direito absoluto à vida, como todas as outras formas de vida”.
- Porém, não considerava a eutanásia como igualmente problemática. Aduziu que “é uma questão que só se deve levantar no interior dos cuidados de saúde” e raciocinou assim:
 “Uma pessoa não pode pedir a outra para a matar. Só há eutanásia quando uma pessoa pede a outra, de uma forma clara e responsável, que a mate. Não se aplica, por exemplo, quando se recusa um tratamento e o médico diz que se não o fizer vai morrer. Há uma diferença no juízo ético entre a recusa do tratamento e a eutanásia.”.
Depois, explicou:
“Aceitar a opinião da pessoa é um dever do médico, [cujo incumprimento é] punido com pena de prisão até três anos. A eutanásia não. O médico delibera que vai matar a pessoa, na sua consciência e nos meios que vai usar, e isso, para mim, é inaceitável. Agora, se eu [só] disser que é proibido pela lei, não posso matá-lo, estou a ser hipócrita. Porque é que a pessoa quer morrer? tem dores insuportáveis? Vamos tratar as dores.”.
Tendo acompanhado muitas pessoas a morrer, nunca nenhum doente lhe pediu a eutanásia. E, afirmando que “o tempo da morte é de uma riqueza formidável”, disse postular que se tenha “disponibilidade” e que já se tenha feito “o luto da própria morte, senão projeta-se a ansiedade em cima daquele que está a morrer”. E, defendendo que os médicos deviam ser preparados para isso, referiu por si, ter começado a fazer esse luto muito cedo:
“Comecei a fazer autópsias de cadáveres ainda antes dos 20 anos. Pegava num bisturi, abria um cadáver, tirava-lhe as vísceras. Como poderia ter problemas com a minha morte? O convívio do patologista com o corpo morto dá-lhe noção de que a morte é um acontecimento natural e até está geneticamente condicionado.”.
Era de parecer que se deviam repensar “os tratamentos excessivos, fúteis e inúteis”, sendo que “o médico resiste muito a fazer a avaliação da situação terminal e tem de aprender a fazê-lo”. Assim, sustentou que a ponderação das situações terminais deve ser uma especialidade médica.
Reconheceu a vantagem de os cuidados paliativos serem hoje “uma nova área de especialidade”, justificando com as novas descobertas e com o que se passava dantes:
“No momento em que se percebeu que havia forma de dar conforto às pessoas que estão a morrer, criaram-se essas condições. O médico tem de olhar para o doente terminal como um doente privilegiado para tratar, não para evitar que morra. […] Não é uma questão de atrasar nem apressar a morte, mas de morrer rodeado de cuidados. Era um pouco o que se fazia antigamente. Quando as pessoas iam para casa, como se dizia, desenganadas dos médicos. O doente assumia o estatuto privilegiado de moribundo e manifestava as suas últimas vontades.”.
Relativamente à crise na bioética, acusou a “apetência da política, da religião, da economia para absorver a palavra”. Assumiu que a bioética “é uma reflexão livre dos seres humanos, a partir da sua inteligência, a partir da sua capacidade de apreciação do mundo e transformação da perceção em significados a que chamamos valores”. Sendo o valor “o sentido que se atribui, pode ser estético, ético, pode ser bom ou mau, ou pode ser estúpido ou inteligente a um nível racional”. Porém, segundo Serrão, “não pode ser um poder porque, no momento em que se transforma num poder, perde a possibilidade de se exercer reflexão livre dos cidadãos, cede a condicionantes”. Ou seja, “a ética ou a bioética devem ser prescritivas, não executivas”.
Como exemplo, citou a famosa a frase do presidente da GM: “O que é bom para a General Motors é bom para o país.” E comentou (não sei se os moralistas lhe legitimam o comentário):
“É ético pesando o interesse da empresa, fazer determinada publicidade passa de indecente a ético consoante o benefício para empresa. Mentir se for uma coisa muito má não é bom, mas se for uma mentira que dê beneficio até pode ser incluída na ética da vida social ou política. A Assembleia da República tem uma comissão de ética para ver se há conflitos de interesses, não para ver se os deputados falam verdade ou se são homens e mulheres de caráter.”.
No atinente à promulgação da lei do casamento de pessoas do mesmo sexo, supôs tratar-se de uma “questão de técnica política”, tendo o Presidente da República evitado que se continuasse a discutir, embora pudesse não o ter feito, já que faz parte dos poderes naturais vetar leis. Porém, no caso, “não iria influenciar os debates sobre a situação económica, aquilo que foi em parte invocado pelo PR”. Subentende-se a sua discordância quando aponta o peso do império da sexualidade.
Sobre a sua ligação ao Vaticano, assentiu que era membro da Pontifícia Academia para a Vida, criada por João Paulo II – uma academia com poucas pessoas, que funcionou bem durante um primeiro tempo e depois deixaram de ser reuniões fechadas onde as pessoas estavam à vontade para discutir o seu próprio pensamento e o Papa pedia para que se pronunciassem sobre determinados assuntos. Estivera duas vezes com Bento XVI, mas ele não tinha o mesmo estilo, nem se sabia se quereria manter a academia (aqui revelou-se distraído), referindo que “os textos dele são mais rigorosos do ponto de vista teológico e até mesmo quando introduz noções científicas”, sustentando que “João Paulo II gostava mais de tratar os temas de uma forma mais afetiva”.
Entre as muitas mudanças, antevia, talvez de forma precoce (não leu o texto de João Paulo II), o sacerdócio das mulheres como uma das mudanças em perspetiva. Disse de forma inexata que “os diáconos já podem ser homens ou mulheres” e que o diácono no cristianismo primitivo já tinha muitas funções” (discute-se se as diaconisas da igreja primitiva tinham as funções hoje atribuídas aos diáconos, só homens). E confundiu a canonização de muitas mulheres com a posição mais alta a que elas (pouquíssimas) ascenderam, a de doutora da Igreja: Santa Teresa de Ávila, Santa Catarina de Sena e, recentemente, Santa Teresinha do Menino Jesus e Santa Hildegarda de Bingen.
Confessou que, estando a caminho do 4.º ano de Medicina, pusera da hipótese de ser padre. Ora, “ser médico venceu” e disso não se arrependeu, na convicção de que enquanto médico podia “realizar algumas das aspirações” que achava ter “como monge beneditino, que era o serviço para os outros”. E, de facto, esteve “sempre ligado à Igreja”.
Reconheceu que a confusão entre fé e vida política nem a Igreja a quer. Referiu que “essa mistura é péssima”, já bastam “os sítios onde os religiosos são os donos do país”. Justificou dizendo que “a atividade política e a da inteligência é uma coisa, e a atividade da inteligência que conduz à fé é outra coisa”.
No respeitante à vida política, à vida pública, opinou que “a maior parte das pessoas” que se ouvem falar “falam não para o país, mas em defesa dos seus interesses”. Assegurando que nunca gostou praticamente de nenhuma dos que exerceram as funções de primeiro-ministro ou de ministro, de todos, quem achava “que tem um pensamento profundo da portugalidade ou do sentido da nação é o Adriano Moreira, que continua hoje completamente livre”. Depois, disse que gostava muito de “ouvir e ler o Eduardo Lourenço” e que, durante muito tempo, gostara do “que escreveu o Agostinho da Silva”, que “tinha uma ideia para a pátria e isso é o mais importante”.
Admitindo a necessidade da “organização política”, julgava que “o essencial é a nação. Todavia, não encontrava “esse sentido em muitas pessoas, sobretudo homens e mulheres de 30 e 40 anos, que sejam capazes de falar à nação como uma nação e não como Estado”. Sustentava que “o Estado é a nação politicamente organizada, mas a nação existe antes do Estado”. Por isso, “era preciso que aparecesse alguém capaz de falar à nação”.
Esclareceu que não estava “a falar de carismáticos, nem de líderes”, mas “de quem seja capaz de ser entendido pela nação profunda, não apenas pelos intelectuais”. E vincou que “o sucesso do Salazar nos primeiros dez anos da sua governação foi perceber que tinha de falar para a nação”. Aduziu que “os historiadores mais independentes” dizem que, no fim daqueles dez anos, o Estado Novo era igual ao estado velho – tinha-se organizado em poderes parcelares, políticos, partidários, embora só houvesse um partido, o regime era partidário”; e que, “a partir do momento em que havia partido, havia os tipos que eram do partido e os que não eram: acabou a nação”.
Em relação à sabedoria da velhice, dizia que era importante “chegar a uma idade que permite olhar para trás e fazer uma perspetiva de absoluto, não de relativo, porque vivemos sempre a relativizar as coisas”: “cada um, na sua intimidade mais íntima”, vendo-se a si próprio, “descobre o espírito”. Depois, “ou acha que é só esse espírito que existe, a autoconsciência, em que nos podemos ver como um outro”, ou entende que “esse espírito é parte do transcendental”. Achava que “é uma espécie de intuição”, sendo que “os neurobiologistas começam a ver se haverá algum suporte neurobiológico para o conhecimento intuitivo”; e, “se houver, pode ser essa a subtileza da fé”.
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Enfim, soube viver com as contingências da vida, fez a sua apreciação do mundo e legou à posteridade a capacidade de intervenção, de descoberta e de trabalho – legado enriquecedor, mas não imune às contradições e às vicissitudes ditadas pelo enigma que é o homem com o seu ser e as suas circunstâncias existenciais.

2017.01.08 – Louro de Carvalho

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