segunda-feira, 7 de julho de 2014

A municipalização da educação ou o cúmulo da degradação educativa?

Está por demais visto e quem tem dúvidas pode perdê-las. Quem gosta fica de parabéns, e a quem não se revê na opção não lhe vale de nada atirar a toalha ao chão, mas não se deve conformar.
Já sabíamos que o governo está cansado de assumir a educação dos cidadãos em devir e arranja todas as formas de alijar as responsabilidades educativas para quem as quiser apanhar a saldo. A Constituição reconhece o direito de participação dos professores e dos alunos “na gestão democrática das escolas nos termos da lei” (art.º 77.º/1) e remete para a lei ordinária a regulação das “formas de participação das associações de professores, de alunos, de pais, das comunidades e das instituições de carácter científico na definição da política de ensino” (art.º 77.º/2).
Quanto à desresponsabilização do Estado em matéria educativa, o percurso, embora incompleto e sinuoso, exibe já muitas marcas, a coberto de valores como proximidade, contexto, crise, racionalização, custos, capacidade de gestão. Vejamos:
– O município designa representante no conselho de direção para a gestão financeira no âmbito do orçamento privativo previsto no DL n.º 43/89, de 3 de fevereiro (o da autonomia das escolas EB 2/3 e secundárias); designa representantes para o conselho de escola ou de área escolar, criado pelo DL n.º 172/91, de 10 de maio (de aplicação não generalizada); designa representantes para a assembleia de escola ou de agrupamento, criada pelo DL n.º 115-A/98, de 4 de maio (regime jurídico da autonomia, administração e gestão das escolas e agrupamentos de escolas); integra, através de representantes por si designados, o conselho geral de escola ou de agrupamento (órgão de direção estratégica), criado pelo DL n.º 75/2008, de 22 de abril, mantido, com poderes reforçados, na alteração operada pelo DL n.º 137/2912, de 2 de julho (regime de autonomia, administração e gestão dos estabelecimentos públicos da educação pré-escolar e dos ensinos básico e secundário).
– “O diretor exerce ainda as competências que lhe forem delegadas pela administração educativa e pela câmara municipal” (vd n.º 6 do art.º 20.º do DL n.º 75/2008, de 22 de abril).
O DL n.º 7/2003, de 15 de janeiro, cria o conselho municipal de educação, em cuja composição, para lá de representantes de muitas entidades, entra o Presidente da Câmara, o Vereador da Educação e o Presidente da Assembleia Municipal. Compete-lhe a elaboração e revisão da carta educativa e o ordenamento da rede escolar.
O DL n.º 144/2008, de 28 de julho, transfere para os municípios novas atribuições e competências em matéria de educação nas seguintes áreas: pessoal não docente das escolas básicas e da educação pré-escolar; componente de apoio à família, designadamente o fornecimento de refeições e apoio ao prolongamento de horário na educação pré-escolar; atividades de enriquecimento curricular no 1.º ciclo do ensino básico; gestão do parque escolar nos 2.º e 3.º ciclos do ensino básico; ação social escolar nos 2.º e 3.º ciclos do ensino básico; e transportes escolares relativos ao 3.º ciclo do ensino básico. (cf art.º 2.º/1).
– Muitas das obras de construção e requalificação de unidades do parque escolar resultam de cumprimento de contrato-programa entre a administração central e o município, ficando este, na maior parte dos casos, com as responsabilidades atinentes ao dono da obra”.
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Além da desresponsabilização crescente que o governo professa, regista-se a desconfiança em relação à autonomia que reconhece, decreta e alega contratualizar, mas que torpedeia a cada passo por meio de despachos, mapas, calendários e plataformas centralizadas.
Por outro lado, momento houve em que nitidamente se percebeu a predileção governamental pela escola privada, de grande apetência potencial em determinados espaços geográficos e o esquisso de reforma do Estado prevê entregar escolas a associações de professores (escolas independentes).
Sobre o ensino particular e cooperativo, previsto constitucionalmente e aderente ao direito de criar escolas e de escolha de escola pelos pais para seus filhos, sabe-se que muitos nunca terão acesso a ele, pelo que o Estado, por princípio não pode alijar responsabilidades em matéria educativa, pelo menos com a facilidade com que o parece querer fazer. E, sendo legítimo o exercício da liberdade de escolha de ensino privado, não podem os encargos recair principalmente no Estado, sobretudo se tal escolha se revestir de contornos caprichosos.
Quanto às escolas ditas independentes, a experiência internacional parece contraindicá-las, caindo hipoteticamente nas limitações do ensino privado, a menos que se queira que Estado pague e os “independentes” giram à sua maneira.
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Porem, segundo a Comunicação Social (dos últimos dias), há pior. O MEC (Ministério da Educação e Ciência), em articulação com a Secretaria de Estado da administração Local e com o Ministro-Adjunto e do Desenvolvimento Regional, tem andado por estes dias em reuniões consecutivas com mais de uma dezena de municípios com os quais quer encetar a experiência da descentralização de competências na área da educação, ao nível do ensino básico e secundário.
O MEC pretendia que a “municipalização das escolas” (com os municípios a assumir visíveis responsabilidades na definição da oferta curricular e, eventualmente, na gestão dos próprios docentes) arrancasse já no ano letivo de 2014/2015. Porém, embora haja interesse por parte de muitos dos municípios contactados, o processo está atrasado relativamente ao calendário delineado. A ideia inicial é aglomerar um mínimo de 10 municípios na fase-piloto do projeto que deverá durar quatro anos, findos os quais, e dependendo da avaliação que vier a ser feita, a delegação de competências passará a ser definitiva.
As negociações têm obviamente seguido a ritmos diferentes nos diferentes municípios abordados. Enquanto alguns se terão posto de fora, outros mostram-se entusiasmados com a ideia, embora confessem taticamente que só aceitam tal regime se houver acordo dos professores (que acordo, que extensão, que professores?). “A proposta do MEC pareceu-nos muito bem formulada, embora as negociações não tenham sido ainda fechadas. O anterior processo de transferência de competências [nas escolas do básico] correu bem, trata-se agora de aprofundar isto e de alargar o processo ao secundário”, adiantou o Presidente da Câmara Municipal de Matosinhos. O Vereador da Educação da autarquia, por sua vez, precisou que está sobre a mesa “uma descentralização e repartição de competências entre os municípios e as escolas (e escolas?!), ficando o Ministério da Educação com as questões de avaliação do próprio sistema e a definição de orientações que se pretende que sejam nacionais para garantir a equidade do sistema educativo”.
Por seu turno, o Presidente da Câmara Municipal de Óbidos mostra-se impaciente para pôr no terreno a sua “escola municipal”, tendo avisado reiteradamente que, com ou sem Governo, colocará em setembro a sua marca no único agrupamento do concelho, já que, ali, o projeto “nasceu muito antes de este governo ter pensado em tal coisa”; e, apesar de “acreditar que as negociações chegarão a bom termo”, desta vez prefere “prevenir a remediar”. Do pré-escolar ao secundário, os alunos terão direito a uma oferta diversificada de atividades cujos custos podem ter de vir a ser suportados integralmente pela autarquia. “Um risco” que o mencionado Presidente da câmara assume, publicitando, a título de exemplo, a oferta de filosofia no 1.º ciclo, de ioga para no pré-escolar, e de golfe e de oficinas de eco design para os alunos mais velhos.
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Mas a educação está a prémio. Aplica-se à educação municipal o sistema da fatura da sorte, só que, ao invés do carro, o prémio é em euros e não para o contribuinte, mas para o município.
O MEC propõe prémio para câmaras que trabalhem com menos docentes. Ligar a componente de financiamento à “boa gestão dos docentes” é a filosofia presente na proposta de “municipalização das escolas”. Dirigentes escolares e FENPROF discordam. “Perigosa” e “desnecessária” é a forma como os dirigentes escolares qualificam a proposta de “municipalização” das escolas que o Ministério da Educação e Ciência (MEC) tem vindo a negociar com os autarcas de vários concelhos do país. A FENPROF adverte para a privatização mascarada de municipalização. E, sim – digo eu – há tanta obra e atividade municipal que a autarquia coloca à disposição dos privados mediante concurso público, concurso limitado e ajuste direto.
Tal como os principais periódicos vêm noticiando, a proposta descentralizadora confere aos municípios um papel interventivo na definição da oferta curricular das escolas, dentro das balizas estabelecidas a nível central, assumindo as autarquias totais responsabilidades pelo pessoal não docente e, nalguns casos, também pelos professores. Uma das novidades é o “fator de eficiência” que premeia as câmaras que trabalhem com um número de docentes inferior ao tido como necessário para o respetivo universo escolar. Assim, num município em que o número de docentes necessários seja, por exemplo, de 400, mas em que o número real de docentes seja 399, a autarquia passará a receber um “prémio” de 12.500 euros por ano letivo – isto partindo do princípio de que esse docente custaria por ano ao MEC 25 mil euros, o custo estimado para docente em início de carreira.
A partilha em 50% do diferencial aplicar-se-á nos casos em que a diferença não seja superior a 5% dos docentes necessários e os resultados escolares não tenham piorado relativamente ao ano anterior. Mas, se o número de docentes ao serviço estiver mais de 5% acima dos tidos como necessários, haverá lugar a “análise detalhada” por uma comissão de acompanhamento. A filosofia subjacente é aliar o financiamento “à boa gestão dos recursos docentes”.
Este esquema, para lá de significar educação a prémio ou oferta de alvíssaras a quem achar a educação “perdida” ou “desaparecida”, mostra o negócio sobre professores (micronegócio, se comparado com os futebolistas!), escravização dos docentes, tornados moiros de trabalho a baixo custo – pior que a privatização. É a degradação da qualidade a bater no fundo; o condicionamento e a sobrecarga dos docentes e o serviço educativo na sujeição ao voto autárquico.
À margem das compensações financeiras aos municípios, o Presidente da ANDE (Associação Nacional de Diretores de Escolas) discorda do princípio da descentralização de competências aplicada às escolas. Apraz-me afirmar, seguindo em parte o seu pensamento, que a educação é um bem fundamental do país e um serviço público de alto significado, pelo deve continuar nas mãos do Estado, sob tutela governativa. “Acho perigosa qualquer experiência que atire isto para as mãos dos autarcas, alguns dos quais, como sabemos, se regem por interesses partidários mais do que pelo superior interesse do município” refere Manuel Pereira, temendo que as escolas passem a ser usadas para fins eleitorais como moeda de troca, em universo eleitoral de âmbito muito limitado como é normalmente o municipal.
Continuo a concordar com o Presidente da ANDE, ao inferir que “mais do que descentralizar, o que está em causa é retirar autonomia às escolas para as entregar aos municípios”.
Do seu lado, o Presidente da Câmara Municipal de Águeda acentua que o processo está em fase prematura e que, “ainda que entretanto se proceda às alterações legislativas necessárias”, os reflexos nos quatro agrupamentos de escolas “não se vão fazer sentir antes de 2015/2016”. “Estamos a dois meses do arranque do novo ano letivo, mas nada impede que o contrato seja assinado em setembro e que a transição de competências se faça de forma gradual”, é hipótese que admite.
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Desde 2008, como já se indicou, que 113 municípios assumiram novas responsabilidades relativamente às escolas básicas e da rede pré-escolar, nomeadamente quanto a contratação e gestão do pessoal não docente, ação social escolar, incluindo as refeições, e atividades de enriquecimento escolar, as chamadas AEC, e construção, manutenção e apetrechamento dos edifícios. Doravante, entre outros aspetos, os municípios que assinarem os contratos de educação e formação municipal ganham poder na definição de  currículos escolares – dentro dos limites definidos pelo MEC – não só no básico mas também no secundário. Tudo isto persegue objetivos como a prevenção do risco de abandono e insucesso escolar mas também, por exemplo, a ligação ao mundo do trabalho.
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Além do que foi dito, é de assinalar que os municípios não serão mais eficazes que os agentes do Estado presentes nos serviços locais nem na prevenção do abandono e do insucesso escolar nem na inserção no mundo do trabalho, a não ser excecionalmente em pequenos municípios em que a presidencialização municipal seja abusiva, até porque os municípios não dispõem de quadros para tal. E bem sabemos como são as escolhas de técnicos no âmbito municipal.
Ademais, nem a municipalização da educação propugnada pela monarquia constitucional e pela I República, como agora consta sobre a municipalização do ensino público brasileiro, produziu avanços significativos na educação ao nível da extensão ou da qualidade. Pelo contrário, no Brasil, terá mesmo acarretado efeitos negativos, como a desmotivação da classe docente e o crescimento galopante do “clientelismo”.
Quanto ao municipalismo do Estado Novo, os titulares dos cargos eram de confiança do Poder Central, pelo que os benefícios ou malefícios da educação não podiam ser imputados a um poder local que efetivamente não existia.

Só me resta a consolação de que este novo sistema não me atinge. No entanto, cá estou para a peleja pelo ensino público de qualidade servido localmente por gente de mérito e não pela ambição municipal ou outra que o oportunismo queira arregimentar. Compete aos professores estarem com atenção e disponibilizarem-se para uma nova guerra pela educação de qualidade e gerida segundo os parâmetros da sã democracia.

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